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domingo, 26 de novembro de 2017

Ameaças da revolução digital ao desenvolvimento sustentável


Publicado originalmente no site Página 22, em 25 de julho de 2017.

Ameaças da revolução digital ao desenvolvimento sustentável
Por Ricardo Abramovay *

Além de estimular os excessos do consumo, o progresso tecnológico contemporâneo põe em risco a democracia, ao concentrar o controle da informação

A revolução digital é responsável por algumas das mais importantes e promissoras realizações rumo ao desenvolvimento sustentável. A energia solar deverá responder por quase um quarto da geração global de eletricidade em 2040, chegando a 29% do total em 2050, segundo importante relatório recente. O mesmo relatório prevê que os carros elétricos serão 35% do transporte rodoviário individual em 2035 e dois terços do total em 2050. Estes são apenas dois exemplos, mostrando a ciência e a tecnologia como condições necessárias para que se altere de forma radical a maneira como as sociedades contemporâneas usam a energia, os materiais e os recursos bióticos dos quais dependem. Mas, nem de longe, são condições suficientes.

O rumo do progresso tecnológico contemporâneo ameaça os valores básicos do desenvolvimento sustentável em ao menos dois sentidos. O que está em jogo é o cerne do crescimento digital dos últimos dez anos, expresso na inteligência artificial, na computação em nuvem, no aprendizado das máquinas e na utilização sistemática e gratuita, por parte dos gigantes digitais, da massa de dados que cada um de nós lhes oferece involuntariamente e que são a base de sua riqueza e de seu crescente poder.

É com base no rastreamento e na capacidade de analisar e mimetizar as informações transmitidas à rede por meio dos mais diferentes dispositivos digitais (mas, sobretudo, pelos smartphones) que se aperfeiçoam os sistemas de reconhecimento facial e de voz, as traduções e, sobretudo, o conhecimento minucioso e individualizado dos comportamentos, das opiniões, das reações e das aspirações das pessoas. E aqui reside a primeira ameaça ao desenvolvimento sustentável.

Ficou célebre a tirada de John Wanamaker (1838/1922), considerado o pioneiro do marketing contemporâneo: “Metade do dinheiro que eu gasto com publicidade é desperdiçada. O problema é que não sei qual metade”. Desde o surgimento dos smartphones em 2007, essa ignorância foi em boa medida superada e, cada vez mais, a publicidade vem deixando de ser genérica e converte-se em mensagens individualizadas e customizadas.

Mais que mudança na publicidade, a inteligência artificial está dando lugar à emergência do que o recém lançado livro de Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee chama de economia de plataforma e cujos exemplos mais notáveis são o Uber, o AirBnb, a chinesa Alibaba, o Waze e todas as que crescem não pelos ativos materiais de que dispõem, mas pela capacidade de utilizar a internet para reunir sob seu comando uma quantidade crescente de atividades econômicas e de serviços. As plataformas respondem a uma lógica segundo a qual o vencedor leva tudo: se na sua cidade houver seis serviços semelhantes ao Waze, dificilmente algum deles poderá funcionar.

A agilidade das plataformas e o conhecimento individualizado das demandas de consumo de cada um de nós resulta numa capacidade inédita de pressão para ampliar o consumo. Com isso, não só o valor das empresas-plataforma tende a aumentar (tanto mais quanto maior for sua difusão), mas, com ele, o próprio consumo.

A chinesa Alibaba, que não detém estoques, frotas de caminhão e outros ativos típicos dos atacadistas convencionais, atende 300 milhões de pessoas por mês e vale hoje mais que a Walmart. Na celebração chinesa do Dia dos Solteiros (11 de novembro de 2016) a Alibaba vendeu quase US$ 18 bilhões, três vezes o total combinado do Black Friday e do Cyber Monday nos Estados Unidos.

A segunda ameaça aos valores básicos do desenvolvimento sustentável representada pelos rumos da revolução digital nos últimos dez anos, é fundamentalmente política. A pergunta que dá título a um artigo recente de John Elkington não poderia ser mais pertinente: “Google poderia tornar-se Deus”? Não se trata apenas de seu impressionante poder econômico e dos impactos deste poder sobre a concorrência. O mais importante é o conhecimento e, a partir daí, o controle sobre a própria vida dos indivíduos a que as tecnologias digitais contemporâneas estão dando lugar.

Mas será razoável, e compatível com a própria democracia, que uma empresa privada detenha de forma tão concentrada o controle e a capacidade de manuseio dessas informações? Responder a esta pergunta exige que se discuta a proposta do especialista Evgeny Morozov: “Todos os dados de um país deveriam estar em um fundo de dados, do qual todos os cidadãos seriam proprietários… Quem quiser construir novos serviços a partir daí terá que fazê-lo em um ambiente competitivo, altamente regulamento e pagando uma parcela de seus lucros por usá-los”.

Pode parecer tímido, mas seria o início de uma transição significativa para democratizar a sociedade da informação em rede e, portanto, para o desenvolvimento sustentável.

* Ricardo Abramovay é professor sênior do Programa de Ciência Ambiental (Procam) do Instituto de Energia e Ambiente da USP – www.ricardoabramovay.com @abramovay

Texto e imagem reproduzidos do site: pagina22.com.br

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